quinta-feira, 11 de março de 2010

Uma opção “violenta” pela educação

> Carta na Escola, Edição 43

Para educador o da USP Romualdo Portella, ainda dá tempo de amarrar as candidaturas a presidente em torno de um compromisso eternamente adiado Ricardo Prado



"Universalizar o Ensino Médio hoje é um desafio mundial”, constata Romualdo Portella, professor livre-docente do Departamento de Administração Escolar da Faculdade de Educação da USP. E com agravantes específicas para a realidade brasileira, como elevadas taxas de evasão e repetência, ausência de professores em disciplinas essenciais e “um currículo de uma inutilidade atroz”. Para esse matemático-educador que aprendeu a dissecar os
números e a analisar os contrastes da nossa educacão, é preocupante que metade dos jovens entre 15 e 17 anos esteja fora do Ensino Médio. E mais preocupante ainda é que esses mesmos jovens estejam sendo formados por professores que não tiveram no magistério sua inequívoca escolha profissional.

Nesta entrevista, Romualdo fala também de suas expectativas em relação a um calendário
composto de três eventos com claro poder de transformar um cenário desalentador: a Conferência Nacional de Educação (Conae), que acontecerá em março; uma eleição majoritária na qual ainda é possível “amarrar as candidaturas em torno de uma opção violenta pela educação”, e, por fim, um Plano Nacional de Educação, que balizará a política educacional do País no próximo decênio. Desde que, desta vez, seja cumprido.



Carta na Escola: Na reunião preparatória da Conae realizada em São Paulo, o senhor defendia que a sociedade civil empunhasse poucas e boas bandeiras, em vez de um leque variado de reivindicações. Quais seriam essas bandeiras?

Romualdo Portella: Há duas: financiamento e gestão. Primeiro, uma defesa muito explícita de ampliação do gasto brasileiro em educação. Acho que a defesa de 10% do PIB para a educação, que se formulou nas conferências regionais, está bem. E outra bandeira é a da gestão. Se a gente gastar mais em educação e se chegarmos a um acordo geral sobre os mecanismos de democratização da gestão da educação, teremos dado um salto de qualidade. Porque essas duas questões, financiamento e gestão, são as que criam condições para que se deem saltos de qualidade.

CE: Pela primeira vez o presidente da República não poderá vetar uma porcentagem do PIB destinada à educação no próximo PNE. Isso é um avanço?
RP: É um ganho, mas pode não ser. Porque é o seguinte: não tem muito como você cercar determinados compromissos de governantes quando isso não faz parte de suas opções políticas. Por exemplo, se apenas for mantido o valor que vem sendo aplicado, que hoje é em torno de 4,6%, 4,7%, depende de como se faz a conta, a disposição legal estará cumprida, mas não muda a natureza da coisa. O ganho que podemos ter é se a gente conseguir, de fato, um número que implique uma mudança qualitativa da situação que temos. Na época de discussão do primeiro Plano Nacional de Educação, em 2001, pediu-se um porcentual de 7% do PIB. Isso, hoje, já representaria um salto significativo.

CE: O senhor considera o primeiro PNE um fracasso?
RP: Certamente, porque toda a parte relacionada a mais investimento não foi cumprida. Com isso, não tivemos, nesta década, mudanças substantivas. Eventualmente pode ter ocorrido algum ganho, mas ficamos muito longe de ter cumprido o essencial do que estava previsto nele.

CE: Afinal, o Fundeb trouxe dinheiro novo para a educação ou não?
RP: O Fundeb tem um dispositivo nele definindo que só 30% vêm dos recursos vinculados, os outros 70% vêm de fora desses recursos vinculados. Já é um ganho nesse aspecto. Mas de montante financeiro representa pouco. Ele representa o que a União faria de complementação no antigo Fundef. Só que, na época do Fundef, o governo federal não cumpria essa complementação. Então, a União cumprindo significa um ganho, mas é um ganho limitado. O curioso é que, conceitualmente, a lógica de complementação do Fundeb é mais modesta do que o Fundef. Por quê? O Fundef trabalhava com a seguinte ideia: você tem uma média nacional e a complementação da União eleva todo mundo que está abaixo da linha para a média. O Fundeb trabalha com essa mesma ideia da complementação, porém limitada a 10% do montante do fundo. Ou seja, não há o compromisso de chegar à média. E para se chegar à média, haveria necessidade de mais que 10% do fundo. Conceitualmente, o Fundeb é mais modesto na ação da União, mas com uma diferença importante: ele está sendo cumprido.

CE: Pegando uma de suas bandeiras, o que é importante discutir na gestão escolar?
RP: Como é que o profissional que está na base do sistema, ou o pai, interfere na definição das políticas educacionais? Não temos um sistema de participação que possua capilaridade para o conjunto da população e, particularmente, para o conjunto da população usuária das escolas. Isso faz com que as políticas educacionais sejam quase um privilégio ou um atributo exclusivo das burocracias governamentais. Os órgãos normativos do sistema não têm participação da população, dos profissionais e dos diferentes agentes envolvidos. Teríamos de trazer a decisão das políticas educacionais mais para o conjunto da população.

CE: Os conselhos escolares não cumpririam essa função?
RP: Eles têm sucesso variado. A maioria não funciona, mas há escolas nas quais funcionam. Só que eles dizem respeito à gestão de uma única escola. O que não temos são organismos sistêmicos. Ou seja, numa secretaria de educação qualquer, que espaço existe para manifestação da base na definição das políticas? Nenhum. Existem os conselhos estaduais ou municipais de educação, que são compostos geralmente pela indicação do prefeito, do governador, de grupo de escolas privadas ou de sindicatos. Não é uma representação da base da sociedade. Acho que a defesa da educação de massa no Brasil tem sido quase uma tarefa dos profissionais de educação, o que é bastante frágil. Na verdade, a gente teria de transformar um discurso que existe na sociedade brasileira, de que a educação é importante, em ações completas, que se ramifiquem no conjunto da política. Em certa medida existe também uma apatia da população em relação à defesa da educação de qualidade para todos.

CE: Como enfrentar o déficit de professores no Ensino Médio?
RP: Vamos pegar o exemplo de formados em Química, que fizeram parte de um projeto de pesquisa que desenvolvi aqui na faculdade. Na Química, o porcentual de formados que se torna professor é relativamente pequeno. E historicamente é pequeno porque os nossos cursos superiores têm uma história de encavalamento. Porque aqui o aluno entra no curso de bacharelado em Química e depois de concluído, se quiser fazer licenciatura, faz. Só que, sendo bacharel, ele pode ingressar no mercado como químico industrial, uma carreira muito mais atraente, em termos financeiros, do que o magistério. Esse quadro se repete nos cursos que têm o ingresso separado para o bacharelado e a licenciatura.

CE: Alguns educadores defendem que se mude a formação dos professores, criando professores generalistas para todo o Ensino Fundamental. Essa seria uma solução?
RP: Acho que cabe essa discussão, porque nós temos uma estrutura de formação complicada. O professor do 1º ao 5º ano é um pedagogo generalista, que fez algum curso de formação ampla. Depois, do 6º ao 9º ano, temos o professor de disciplina, portanto, um especialista naquela área do conhecimento. Isso reproduz a antiga separação entre o ginásio e o primário. Acho que teríamos de trabalhar numa integração maior aí. Em certa medida, você ter um professor, pelo menos nesse período da transição do Ensino Fundamental, que dialogue com mais de uma área de conhecimento seria interessante. E no Ensino Médio, onde se justifica ainda ter a formação específica, é preciso buscar uma reconceitualização do currículo como um todo: transformá-lo em algo mais atraente, o que implica produzir metodologias de resolução de problemas, propostas multidisciplinares etc. Agora, nosso problema principal não está aí. O déficit de professores surge da baixa atratividade da profissão. Se a profissão de professor de Ensino Médio fosse interessante, em vez do bacharel em Química ir para o mercado de trabalho, sua opção seria o magistério. Os melhores alunos do Ensino Médio não querem ser professores, e isso é um problema. E, além da baixa atratividade salarial, também não existe uma carreira no magistério que consiga manter os bons profissionais na sala de aula. No Brasil, para um professor subir na carreira, precisa deixar de dar aulas e virar coordenador, supervisor, diretor etc. E essas são habilidades diferentes. Um ótimo professor não será, necessariamente, um bom diretor, mas ele se vê forçado a fazer isso pelo estímulo econômico. Isso retém pouco o bom professor na sala de aula. E segundo: como a remuneração é baixa, há muitos professores que trabalham em mais de uma escola. Nos últimos 25 anos, formamos mais professores do que o número de postos existentes no País. Mas, se olharmos os que efetivamente estão em exercício, nem todos têm formação. O que isso significa? Estamos formando profissionais sem conseguir segurá-los na profissão. Então, essas duas pontas, a baixa atratividade salarial e a falta de carreira, estão soltas. Você tem de aumentar a atratividade, mas para isso acontecer é preciso tornar a profissão mais interessante do ponto de vista de remuneração, das condições de trabalho e de carreira. Sobre a formação, o modelo importa pouco se você fizer bem feito.

CE: Quais países sabem valorizar a profissão docente?
RP: A Finlândia, certamente, é o exemplo que todo mundo usa. Mas a Inglaterra também tem uma experiência muito interessante que tem a ver com a valorização social da profissão. Lá houve campanhas na televisão de valorização da função docente. Isso é uma coisa que poderíamos fazer também. É preciso aumentar a atratividade da profissão com elementos materiais, mas também com elementos subjetivos, que têm de ser enfrentados. Nós temos a Escolinha do Professor Raimundo, mas não o “Hospital do Dr. Raimundo”. Quer dizer, aqui há uma desmoralização sistêmica da profissão.

CE: O senhor tem um texto no qual fala que as contradições na educação brasileira apenas mudaram de lugar com a ampliação do acesso. Onde elas se encontram agora?
RP: Nós, educadores, não estamos dando conta de responder à seguinte questão: qual a terminalidade inicial da formação com que o País deve trabalhar? Um exemplo. Os governos militares, quando implementaram a profissionalização compulsória do Ensino Médio, trabalharam com a ideia de que, no final desse nível, qualquer graduado tinha de ter uma profissão. Hoje nós não temos uma resposta a essa questão e, portanto, temos um problema. Se você não diz, em termos sistêmicos, onde se encerra a formação inicial, gera uma demanda sem fim para níveis posteriores de ensino. Ora, se eu fizer uma lógica de universalização de todo o sistema, não haverá como atender todos. Ou privatizo ou abaixo a qualidade, ou faço ambas as coisas. Então, acho que o modelo que mais se aproxima do que é a nossa dinâmica é o seguinte: nós deveríamos ter um Ensino Médio de formação geral seguido por uma rede de massa de formação profissional. Algo como os Community College norte-americanos, com cursos profissionalizantes de até dois anos para o grosso da população. Aí, uma parcela partiria para as universidades de pesquisa e para a formação superior mais especializada. Ou seja, temos de dar conta de uma formação profissional para o grosso da população que não vise necessariamente formar mestres e doutores, nem profissionais de nível superior em cursos de quatro ou cinco anos. Mas como todos têm de ter uma profissão, seria preciso haver uma generalização de cursos profissionalizantes mais curtos, que, aliás, estão aumentando no Brasil. As escolas técnicas federais e estaduais estão crescendo bastante, mas em termos absolutos ainda representam pouco. O Lula vai deixar o poder com cerca de 230 escolas técnicas profissionalizantes, mas essa matrícula teria de chegar na casa dos milhões. Se não resolvermos a oferta de cursos profissionalizantes, cria-se uma demanda pelo Ensino Superior. E o Ensino Superior público é relativamente caro. É claro que é preciso ter uma rede de universidades de pesquisa, mas ela tem de crescer proporcionalmente menos do que esse ensino de massa de formação tecnológica e de formação para o magistério. E nós estamos longe disso ainda, com 50% de matrícula líquida no Ensino Médio. Ou seja, 50% da população de 15 a 17 anos está fora dele, e tínhamos de ter 100% dessa população para universalizarmos o Ensino Médio, que é hoje um desafio mundial. E não dá para pensar que haverá um salto de desenvolvimento no País sem universalizar 12 anos de escolarização para toda a população.

CE: Uma pesquisa feita pelo Marcelo Néri, da FGV, revelou que boa parte dos alunos do Ensino Médio deixa de estudar por não ver na escola uma perspectiva de melhora de vida. A escola média perdeu sua significância?
RP: É a significância do currículo que se perdeu. Quer dizer, para uma parcela da população o currículo de Ensino Médio é de uma inutilidade atroz. Por isso se entra nesse debate curricular: introduzir metodologias de resolução de problemas, buscar enfoques multidisciplinares para conectar as coisas. Ou seja, é preciso abandonar a lógica da gavetinha: o que se aprende em Matemática não se usa em Química ou em Física. O currículo não está bem ajustado nem para as necessidades do País nem para as necessidades do aluno.

CE: O Brasil apresenta alguma evolução no combate à reprovação?
RP: Acho que houve alguma evolução, embora ainda tenhamos uma taxa de reprovação alta, em torno de 17% a 20%. E dados mais recentes mostram que houve uma certa flutuação com tendência de crescimento da reprovação. Mas também é importante ressaltar que, se analisarmos um período de tempo mais extenso, aumentamos a permanência e a conclusão no Ensino Fundamental, o que significa um ganho importante. A contrapartida disso é que a gente se defronta cada vez mais com a questão da qualidade.

CE: Algum país conseguiu abordar essa discussão, um tanto subjetiva, da qualidade da educação de uma forma interessante?
RP: Não existem modelos que a gente consiga copiar porque os sistemas são diferentes, os perfis de participação também. Mas, por exemplo, acho que os Estados Unidos equacionaram muito bem essa questão, a Coreia do Sul em tempos recentes, a Inglaterra, a Finlândia, até mesmo Cuba, que deu um salto qualitativo. Agora o problema é que nenhum desses modelos é copiável porque o peso da história, da cultura e das tradições também conta. Nós temos de achar nosso caminho. E você tem razão quando diz que a discussão sobre qualidade entra em um campo mais subjetivo, em que não existe um parâmetro que seja inconteste. Então, chegar a esse acordo sobre o que é uma educação brasileira de qualidade é uma coisa de pacto. Seria preciso acontecer um acordo nacional e, nesse aspecto, este ano de eleições majoritárias é promissor. Acho que teríamos de amarrar os candidatos à Presidência nessa perspectiva de priorização violenta da educação

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