sábado, 23 de maio de 2009

Educação, mercado e direitos humanos

Mariângela Graciano1 e Sérgio Haddad2
1 Mariângela Graciano é assessora da ONG Ação Educativa, coordenando o Observatório da Educação
2 Sérgio Haddad é coordenador geral da ONG Ação Educativa e diretor-presidente do Fundo Brasil de Direitos Humanos

In: DIREITOS HUMANOS NO BRASIL 2008- Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos - Disponível em http://www.social.org.br/relatorio%20dh%20brasil%202008.pdf


O capitalismo financeiro, no mundo, entrou em crise no ano de 2008. Ainda assim,
a lógica do mercado mantém sua força e influencia a maioria das relações humanas e
seu universo simbólico. A Educação, direito humano universal, vem gradativamente
sendo disputada pelos interesses de mercado e pela força do capital.
Constatada e reconhecida a massificação do ensino fundamental pelo poder público
– o Brasil tem quase 98% das crianças de 7 a 14 anos na escola, 90% estudando na
escola pública –, se fortalece a idéia de que a iniciativa privada tem muito a oferecer à
educação pública, tanto para ampliar o acesso na educação infantil, ensino médio e
ensino superior, ainda não universalizados, como para conferir qualidade à educação
básica em geral, a partir da sua lógica. Hoje, o ensino privado já é responsável por 60 %
da oferta do ensino superior.
Quando não é pela oferta direta de vagas no “mercado” educacional, a lógica de
mercado perpassa o ensino público como exemplo a ser seguido para sua gestão ou
como forma de se apropriar dos seus recursos orçamentários. A situação do ensino
médio expressa exemplarmente a situação. De acordo com a PNAD 2006, o
acesso ao ensino médio é profundamente desigual. Consideradas as pessoas com
idade de 15 a 17 anos, entre os 20% mais pobres apenas 24,9% estava matriculada,
enquanto entre os 20% mais ricos, 76,3% freqüentava esta etapa do ensino.
Apesar do aumento constante do número de matrículas no Nordeste e da redução
no Sudeste, para o mesmo grupo etário os índices são, respectivamente, 33,1%
e 76,3%. O recorte étnico-racial demonstra que apenas 37,4% da juventude negra
acessava o ensino médio, contra 58,5% branca. Entre os que vivem no campo,
apenas 27% freqüentavam o ensino médio, contra 52% da área urbana.
A qualidade do ensino, aferidas pelos exames, também é marcada pelas desigualdades.
O índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB/2005) foi
de 3,4 para o ensino médio nacional. Para estudantes da rede privada foi de 5,6 e
das redes públicas 3,1. Considerando que a escala é de 0 a 10, constata-se que os
níveis de aprendizagem são insatisfatórios para todos, mas é sensivelmente inferior
para as escolas públicas, que respondem por 89,8% das matrículas, sendo 0,82%
de responsabilidade do governo federal, 86,5% estadual e 1,96% municipal.
Na ausência de propostas de políticas públicas, vem ganhando espaço alternativas
como aquela apresentada pelo Instituto de Co-responsabilidade pela Educação
(ICE), de Pernambuco, cuja proposta, já implementada naquele estado e
que está sendo levada para outros da região Nordeste, consiste no estabelecimento
de parcerias entre governos, empresas privadas e fundações empresariais para
gestão da rede. O financiamento das escolas, que passaram a funcionar em período
integral, continua com o Estado, e o ICE, por meio de parceria com o setor
privado, participa com investimentos nas instalações físicas, consultorias para novas
tecnologias em conteúdo, método e gestão, assim como é co-gestor dos centros.
A iniciativa, envolvida e apresentada por intensa estratégia de marketing, vem
sendo apontada como alternativa a ser implantada em todo o País, e o argumento
mais forte é a melhoria do desempenho dos estudantes nos exames.
Com forte processo seletivo e de controle sobre professores e alunos, as
iniciativas vão se constituindo como ilhas dentro da rede, criando condições particulares
e não universais para todo o sistema. A idéia mais forte encerrada nesta
proposta é a de que os problemas da educação estão fundamentalmente vinculados
à qualidade da gestão pública, e não ao financiamento ou à definição da sua
função social ou ainda à perversa desigualdade que marca a sociedade brasileira,
determinando quem está, quem permanece e como permanece na escola. Um
choque de gestão privada seria a solução!

Ofício docente
Desconsiderar condições socioeconômicas e reduzir as ações para melhoria da qualidade
de ensino a ajustes de gestão também tem sido a opção do poder público em
relação ao ofício docente.
Nesta perspectiva, o destaque de 2008 vai para o conjunto de medidas implementadas
na rede estadual paulista de ensino.
Na tentativa de uniformizar a aprendizagem em toda a rede e desconsiderando a
autonomia das equipes pedagógicas das escolas, a Secretaria Estadual de Educação
elaborou manuais de orientação sobre o conteúdo curricular e a forma como deve ser
trabalhado em sala de aula. O professor passa a ser uma peça na implementação de
currículos elaborados de forma centralizada e por especialistas, desumanizando o trabalho
docente no seu saber próprio e criativo.
Além de estabelecer o conteúdo, a SEE implementou medidas que incidiram
diretamente sobre o cotidiano docente. A premiação financeira das equipes das escolas
com base no desempenho dos estudantes foi uma delas, estimulando a competição
entre elas. Atores vinculados ao empresariado defenderam a lógica de mercado, que
prevê a premiação dos melhores profissionais – alguns lamentaram não haver punição
para os que não atingissem as metas esperadas.
Chamou a atenção, a ausência de informações confiáveis sobre a eficácia dessas
iniciativas para a melhoria da qualidade de ensino, sobretudo quando não acompanhadas
de ações como políticas salariais satisfatórias, reorganização da carreira de forma a
valorizar mais o trabalho em sala de aula do que nas funções burocráticas, organização
dos mecanismos de atribuição de aulas, além do resgate da imagem social, depreciada
pela desvalorização socioeconômica e simbólica da profissão.
Também, bastante significativa neste contexto foi a resistência apresentada pelos
gestores dos estados mais ricos, notadamente São Paulo e Rio Grande do Sul, à
implementação do Piso Salarial Nacional do Magistério. O problema não foi o valor
inicial estabelecido, mas sim o fato de a legislação prever a ampliação do tempo remunerado
dedicado ao trabalho pedagógico. É evidente a opção por um modelo de
gestão empresarial – retira-se toda a natureza intelectual do trabalho docente, que fica
reduzido à repetição de tarefas, elaboradas fora do seu contexto de sala de aula. Assim,
o professor é obrigado a manter um número elevado de aulas para sua sobrevivência,
forçado-o a depender de outros para o preparo do seu ofício de docente.

Testes, apostilas e a Declaração de 1948
As metas a serem atingidas são conteúdos pré-estabelecidos e medidos por avaliações
periódicas, que são transmitidos por materiais didáticos formulados apenas para
este fim. Tanto as metas, quanto os conteúdos, a avaliação e o material didático, saem
gradativamente das atribuições do trabalho docente, passando para as mãos dos chamados
especialistas, quase todos vindos de fora da rede e do seu cotidiano de trabalho.
Ao estabelecer esta forma de organização dos sistemas de ensino, a gestão pública
estimula uma outra forma de aproximação entre a iniciativa privada e a educação pública:
o mercado das apostilas. Na ânsia de fazer com que seus alunos atinjam os índices
pré-estabelecidos pelas avaliações, gestores estão contratando empresas privadas
especializadas na produção de apostilas e gestão educacional.
Além do modelo gradativo de privatização, tais procedimentos assustam por reduzirem
a educação ao treinamento para exames, chocando-se com os propósitos da
educação, nas dimensões do acesso e da qualidade, anunciados na Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 1948.
O documento, que está completando 60 anos, estabelece a educação orientada para
o pleno desenvolvimento da personalidade humana de professores e alunos, fortalecimento
do respeito aos direitos de todas as pessoas e promoção da paz. Sobre a qualidade,
afirma o direito de participação nos bens culturais e científicos socialmente produzidos
pela humanidade.
E, o mais importante: a lógica de mercado é antagônica à dimensão universal do
direito à educação. Adotá-la significa aprofundar as desigualdades que estruturam a
sociedade brasileira. Esperar que a iniciativa privada equipe as unidades escolares é condenar
as populações tradicionais do campo à falta de escolas ou, quando muito, ao
acesso à precariedade, já que não há interesse mercadológico em unidades como estas.
Transformar o trabalho docente em trabalho alienado, repetitivo de conteúdos definidos
fora do seu cotidiano escolar, esvaziado do seu trabalho criativo é transformá-lo
em peça de uma máquina de produzir resultados, cuja lógica é a da competição e não a
do direito. Mensurar o desempenho dos alunos por testes que são definidos fora do
trabalho docente é excluir aquelas e aqueles que, por razões de diversas ordens, não
desenvolverão as habilidades prescritas nos manuais, pois a lógica do mercado não
pode perder tempo com “peças mal feitas”.
Enfim, a lógica do mercado, se contrapõe à construção da educação universal,
pública, gratuita e orientada para estimular a produção de conhecimento, e convivência
pacífica e justa entre todas as pessoas. É esta lógica que vemos gradativamente sendo
implementada na oferta da educação.

Nenhum comentário: