domingo, 24 de maio de 2009

“Precisamos ir além da narrativa”

Carta na Escola
por Livia Perozim

Para Ezequiel Theodoro da Silva, a escola deixa de formar um cidadão ao não apresentar os diferentes gêneros de linguagem e modos de ler

Desde a década de 70, o professor da Unicamp Ezequiel Theodoro da Silva vem dirigindo suas pesquisas para a leitura escolar e a formação de leitores. Além de diversos livros sobre o tema, participações em congressos e um longo trabalho de formação com docentes de vários estados do País, Ezequiel colaborou com a fundação da Associação Brasileira de Leitura, que realiza em julho a 17ª edição do Congresso de Leitura do Brasil (pág. 10). Em sua trajetória pela democratização do livro e da leitura, o atual professor aposentado aprofundou a ideia de que ensinar a ler “é uma função do coletivo escolar” e não apenas dos professores de Língua Portuguesa, como costuma acontecer. Nesta entrevista a Lívia Perozim, Ezequiel fala sobre o papel da leitura como uma competência básica para o exercício da cidadania e aponta algumas questões que atravancam a formação de um aluno leitor e escritor. Entre elas, o empobrecimento cultural da escola, a falta de um currículo que agregue um repertório contínuo de gêneros literários e autores e o fato de não haver uma vivência escolar no Ensino Médio, direcionado apenas ao pragmatismo do vestibular.

Carta na Escola: Qual é o principal problema dos alunos em relação à leitura?
Ezequiel Theodoro da Silva: A fragilidade se dá ante uma situação social específica, constituída dentro de um contexto social específico. Nesses termos, me parece que a resposta que o jovem vem dando ao universo da escrita impressa se vê enfraquecida em razão da falta de estímulo socioambiental. Na escola, na família e em outras instâncias sociais, onde a leitura poderia ser mais bem viabilizada, está afastada ou retraída a oferta de materiais escritos. Por outro lado, a internet traz a linguagem virtual com um determinado tipo de configuração e uma atração histórica pelo universo das imagens.

CE: A internet mudou o jeito de ler?
ETS: Acho que sim. Cada meio de transmissão da escrita solicita um gesto de leitura. Você não lê uma revista da mesma forma que lê um jornal. Esses diferentes suportes impõem ao leitor uma determinada atitude de recepção. Algumas coisas eu posso ler velozmente. Outras, com muita pausa. Um poema do Manuel de Barros é para ser curtido, cada linha é uma reflexão.

CE: Qual a diferença entre a leitura no suporte impresso e na internet?
ETS: A escrita virtual tem um componente de velocidade muito forte e uma gramática específica de composição. Os componentes de reflexão sobre o que se lê não cabem no universo veloz da internet. Quando a leitura exige um gesto mais pausado e meditativo, o jovem não encontra meios que o façam desacelerar. Essa velocidade gera um hábito de o sujeito viver no mundo da pressa. As pesquisas mostram que o jovem numa tela de computador vê muito mais coisas, coloca os olhos em muitos pontos perceptivos que demonstram uma situação diferençada de leitura. A escola peca ao não mostrar ao aluno que existem diferentes propósitos e dimensões do modo de ler. Um leitor bem preparado é aquele que estabelece os propósitos e as necessidades, conforme o tipo de texto que ele tem pela frente.

CE: A escola peca ao não diversificar os gêneros textuais de leitura?
ETS: Sim, porque há uma ênfase muito grande na narrativa e os outros gêneros são totalmente esquecidos. Precisamos ir além da narrativa. A argumentação, a linguagem do posicionamento, fica muito pulverizada na escola. Tempos atrás, fizemos uma pesquisa na PUC-SP e vimos a dificuldade do aluno que entra na universidade em configurar um texto de opinião. Isso revela um tipo de escola transmissora e reprodutora e não de uma escola questionadora. A escola deveria trabalhar todos os gêneros – narrativo, descritivo, dissertativo e argumentativo –, de modo que se forme aquilo que se espera da escola: o cidadão, o cara que se posiciona. Um cidadão deveria dominar todas as estruturas de linguagem e todos os modos de ler.

CE: As histórias em quadrinhos podem ser uma plataforma de leitura para estimular a aproximação com a literatura adulta?
ETS: O caminho que leva ao gosto pela literatura clássica ou regional é positivo quando se sabe aonde se quer chegar. A escola tem a função primordial de levar ao letramento, ao domínio da leitura e da escrita. O aluno tem de chegar ao final do Ensino Médio sabendo ler e escrever e podendo interagir com aquilo que circula socialmente. O que ocorre muitas vezes é que a escola se perde no caminho. Nesses casos, as HQs deixam de ser um meio para uma literatura mais “sofisticada”.

CE: Como os professores de outras áreas que não a de Língua Portuguesa podem trabalhar na formação do aluno leitor e escritor?
ETS: Por volta de 1972, eu já falava na Câmara Brasileira do Livro que o ensino da leitura é uma função do coletivo escolar e não de um professor. O que eu defendo é que a leitura seja um tópico planejado e discutido no projeto político pedagógico da escola.

CE: Quais os aspectos fundamentais de um projeto de leitura?
ETS: A gente peca na sequenciação de desafios para leitura. Um fator escolar terrível para formação do leitor é a redundância curricular. Como não há integração, a criança vê e revê os mesmos autores e os mesmos textos o tempo todo. É como o ensino de Inglês na escola. Todo mundo ensina o verbo to be. Há um complexo de gêneros literários e de autores que pode ser colocado em um tronco curricular crescente e espiral, de modo que o aluno conviva com todos os gêneros no decorrer de sua vida escolar. É o que a secretaria estadual de educação de São Paulo está tentando colocar em prática. Havia um imenso caos no currículo da rede estadual. A primeira série não leva para segunda e assim por diante. Nos anos terminais do Ensino Fundamental e no início do Ensino Médio, os resultados são drásticos porque o sujeito não incorpora autores, conhecimentos, linguagem.

CE: Como o professor pode trabalhar com um aluno que chegou ao Ensino Médio sem o repertório esperado?
ETS: Tem um grande psicólogo norte-americano, o Gerald Brommer, que diz assim: comece a ensinar do nível que seu aluno está. O que se percebe é que o repertório acadêmico e cultural dos alunos, em razão desse caos curricular, deixa muito a desejar. Certamente o professor do Ensino Médio vive um dilema, que se repete na universidade: avanço com poucos ou não avanço com ninguém? Outra questão que fortaleceria o trabalho do professor nesse tipo de situação é a estrutura escolar e os profissionais que poderiam estar a serviço do ensino. Eu tenho defendido uma estrutura administrativa mais complexa, que aborde informática, saúde do escolar, drogas, violência urbana e a vida complexa que se vive. A complexidade das coisas, tratada por Edgar Morin, não está sendo vista pela administração da escola, que continua com o diretor, o vice e o coordenador pedagógico. A escola foi perdendo profissionais, quando deveria ter um técnico de informática para atualizar equipamentos, um psicólogo, um médico... As propostas mais inovadoras, como a Escola Parque, criada por Anísio Teixeira na Bahia, e os Cieps (Centro Integrado de Educação Pública do Estado), do Darcy Ribeiro, traziam esses profissionais. A escola deveria ter, já faz tempo, um bibliotecário, mas o governo não abre perspectiva de contratar esse profissional.

CE: Há uma estimativa de quantas bibliotecas escolares o Brasil tem na rede pública?
ETS: No estado de São Paulo, 70% das escolas têm biblioteca. No Brasil, cai para 50%. O que ocorre é que mesmo que haja livros não tem o profissional que conduz a biblioteca. Por isso, os programas de distribuição gratuita de livros falham na base. Os livros chegam à escola, mas não tem ninguém para recebê-los, organizá-los e disponibilizá-los. Os livros se perdem. Nós estamos distribuindo livro no Brasil desde 1970. São milhões e milhões de reais. Mas isso não melhora o ensino.

CE: Por que o acesso ao livro não vem melhorando o ensino?
ETS: Há uma tradição de biblioteca que é a de normatividade. Essa visão foi muito questionada. Já existem concepções mais arejadas de biblioteca que não seja um mero apêndice ou local de castigo, mas um lugar atraente e articulado com as atividades de ensino. A tradição norte-americana de desenvolvimento de escolas nasce pela biblioteca. No Brasil, é o inverso. Continuamos com escolas sem bibliotecários. Esses mecanismos são importantes porque apontam para situações possíveis de leitura. O que significa a Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo? É uma possibilidade de ler e de ver outras pessoas lendo. A escola é um espaço empobrecido culturalmente. O Bartolomeu Campos de Queirós diz que as escolas brasileiras são feias. A escola bonita, na concepção de Paulo Freire, é a que tem uma estrutura cultural condizente com o seu tempo. Talvez os Centros Educacionais Unicaficados (CEUs), que a Marta Suplicy fez na cidade de São Paulo, agora venham a ter.

CE: Na passagem do Ensino Fundamental para o Ensino Médio, quando se exige uma postura mais distanciada e mais técnica do leitor diante do livro, a escola, em lugar de promover a leitura cria rejeição a ela?
ETS: O currículo escolar brasileiro, que representava possibilidades de convivência com a cultura, tornou-se pobre e pragmático. Muitas disciplinas foram queimadas, principalmente aquelas voltadas à cultura geral, como o Francês, o Inglês e as Artes Manuais. Quando se restringem as possibilidades de vivência curricular, restringe-se também o contato cultural. Ou seja, se eu tenho aula de Francês, posso entrar em contato com os autores e a cultura de outro país. A passagem para o Ensino Médio cria outro fator direcionado ao próprio pragmatismo do vestibular, a ponte para a universidade. Na 8ª série, o aluno começa a diversificar os seus interesses. Por outro lado, a escola funciona para colocá-lo na universidade. A vivência escolar de Ensino Médio se perdeu. Por isso não se fala muito de Ensino Médio no País. Parece que ele não existe. É o fantasma da educação.

CE: As listas que os grandes vestibulares impõem aos candidatos sintetizam o que precisa ser lido nessa etapa da vida?
ETS: Acho que não. Um leitor não se faz com vinte obras de lista de vestibular. Ele precisa de muito mais. Mas sou a favor da lista. Ao menos, temos uma orientação. Agora, a forma como a leitura é trabalhada é extremamente didatizada.

CE: Os autores contemporâneos dificilmente entram nas listas de livros para os vestibulares. Os jovens não poderiam se identificar experimentando essa literatura?
ETS: Determinados temas que poderiam ser discutidos nessa fase existencial do jovem são deixados de lado porque há um tempo curricular a cumprir. Para introduzir determinados temas e selecionar uma literatura mais experimental é preciso ter um professor leitor. Tenho várias pesquisas que mostram uma redução significativa no repertório literário dos professores. Há uma tendência muito forte para a auto-ajuda e a literatura religiosa. Esse é o gosto de leitura da maior parte dos professores. A leitura de autores contemporâneos é rara entre eles, que são hoje maus leitores.

CE: Isso vem sendo discutido nos cursos de Pedagogia?
ETS: Os cursos reproduzem um procedimento que é ler sobre literatura e não ler literatura. Nós tivemos o Plano Nacional do Livro e da Leitura e o Ministério da Cultura nos solicitou um programa de formação de mediadores de leitura. Foi proposto que o curso reservasse de 40% a 50% de sua carga horária para o sujeito ler e se formar leitor.

CE: Por que a leitura de narrativas longas não faz parte do hábito de leitura dos jovens?
ETS: Por que os textos se encurtam? Porque o tempo curricular é curto. A narrativa longa demanda tempo, energia, planejamento e acompanhamento da leitura. Demanda não só atitude, mas a criação de situações e espaços curriculares em que a narrativa longa venha a acontecer dentro da própria escola.

CE: De que maneira a leitura está relacionada à escrita? É possível escrever bem sem gostar de ler? Já foram feitos estudos nesse sentido?
ETS: As leituras são visitas a configurações e modelos de escrita. Convivemos com o universo da escrita através da leitura. Essas frequentações possibilitam expressões diversificadas. Ao entrar na gramática de Guimarães Rosa e conviver com aquilo, aprende-se que a transgressão da gramática tradicional é possível. As pesquisas que existem sobre a relação escrita e leitura não apontam que os melhores leitores são os melhores escritores. É mais uma questão de possibilidades: muito do jeito de escrever nasce de uma síntese do que aprendemos com a escrita dos outros.

CE: Várias pesquisas confirmam que a leitura é uma história de família. Por que algumas pessoas adquirem o hábito da leitura e outras, não, mesmo em condições simulares? Na mesma família, por exemplo?
ETS: A convivência com situações de leitura é fundamental para a produção de novos leitores na sociedade. Entretanto, por pesquisas, também sabemos que grande parte das famílias brasileiras não cultiva a leitura. Seja porque você tem pais trabalhadores que não têm muito vínculo com a escola ou porque nunca deram muita bola para isso e preferem outros mecanismos de circulação de informação. Com o enfraquecimento da família na estimulação socioambiental da leitura, a escola ganha uma importância mais vital, assumindo uma função que seria da família. E não adianta partir para uma visão de esquiva. A escola hoje tem essa função cultural. É preciso ter consciência que nas famílias mais empobrecidas, de analfabetos funcionais, o leitor floresce na escola. Uma família mais humilde tem plena consciência da importância da leitura e da escrita. O sujeito é não leitor, mas quer que o filho seja um leitor. Manda o filho para a escola para ler, escrever e contar.

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