quarta-feira, 18 de março de 2009

Reprovar não resolve

Revista Carta na Escola, Edição 34



O medíocre desempenho de alguns alunos embasa as críticas à “aprovação automática”, mas a experiência mostra que faz mais sentido manter o sistema de ciclos By Rodrigo Martins Sorridente, calmo e comunicativo, Ítalo Gomes de Jesus, de 14 anos, é considerado um aluno obediente e esforçado, sempre disposto a acompanhar com atenção as aulas da Escola Municipal Oliveira Viana, no Jardim Ângela, zona sul de São Paulo. Apesar do empenho, ele só conseguiu se alfabetizar no fim do ano passado, após passar por aulas de reforço. Ainda assim apresenta dificuldade para formar palavras com sílabas de pronúncia semelhante. “Gosto muito da escola, mas essas letras são confusas”, justifica-se o garoto, que de tão franzino aparenta ter menos de 10 anos. Diante do problema de aprendizagem, Ítalo ficou retido por dois anos antes de avançar à segunda etapa da educação fundamental (do 5º ao 9º ano, antiga 8ª série). Na sala de aula, hoje, convive com estudantes dois anos mais jovens. Mas, se estivesse matriculado numa escola do sistema seriado, com avaliações anuais, certamente estaria mais atrasado. Seu nível de alfabetização, comentam os professores, é condizente com o de um aluno do segundo ano do ensino fundamental, e não do sexto. Por essa razão, talvez Ítalo estivesse dividindo os bancos escolares atualmente com estudantes de 7 ou 8 anos, metade da sua idade. Ou pior, poderia ter abandonado os estudos. “Conheço bem essa história. Estou há 30 anos nesta escola e já trabalhei no modelo seriado. Depois de ser reprovado pela segunda ou terceira vez, o aluno não volta mais. Provavelmente, o Ítalo jamais seria alfabetizado”, comenta Jucileide Mauger, diretora da escola. O progresso do jovem só foi possível porque sua escola aderiu aos ciclos de progressão continuada, criados com o propósito de combater a repetência e a evasão escolar. Pelo sistema, o aluno só pode ser reprovado ao término de cada etapa, que pode variar de dois a quatro anos, dependendo do modelo adotado pela rede de ensino. E muitas escolas, a exemplo da Oliveira Viana, aprovam a passagem de um aluno com deficiência de aprendizagem de um ciclo para outro, de forma a garantir que ele conviva com estudantes de idade semelhante e não fique muito para trás. A adoção do sistema não garante um desempenho escolar superior, mas trouxe importantes avanços em termos de inclusão nos lugares onde foi implantado (cerca de 30% das escolas públicas do Brasil adotaram a progressão continuada, segundo o Censo Escolar de 2006, o último a separar os dados dos diferentes modelos). O estado de São Paulo, por exemplo, foi um dos primeiros a aderir aos ciclos, em 1998. De lá para cá, a taxa de abandono no ensino fundamental caiu de 4,6% para 1,4%, o menor índice da história. No ensino médio, a melhora também foi significativa. Em dez anos, a evasão escolar reduziu-se à metade (5,4%). A experiência da maior rede pública do País não é um caso isolado. Dados do Ministério da Educação comprovam que as escolas que adotaram os ciclos têm taxas de abandono e reprovação bem inferiores às demais (gráfico nesta página). Mas, apesar dos avanços, o modelo de progressão continuada é alvo de fortes ataques. A cada nova eleição, surgem críticas ferozes ao sistema, apelidado de “aprovação automática”. Recentemente, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PMDB), cumpriu uma promessa de campanha. Extinguiu, por decreto, dois dos três ciclos previstos para a educação fundamental na cidade e encarregou a secretária de Educação, Claudia Costin, de rever o modelo. Os ciclos foram adotados na rede municipal em 2007, na gestão de Cesar Maia (DEM). A reação aos ciclos não encontra eco apenas na seara política. Em janeiro, o promotor Fausto Luciano Panicacci obteve na Justiça uma tutela antecipada para impedir a progressão continuada nas escolas públicas de ensino fundamental de Várzea Paulista, um município do interior de São Paulo com cerca de 100 mil habitantes. Por determinação da juíza Flávia Cristina Luders, as escolas municipais e estaduais da cidade foram obrigadas a voltar ao modelo de séries, reprovando os alunos que não comprovarem ter aprendido ao menos 50% do conteúdo de cada disciplina durante o ano, sob pena de multa diária de 10 mil reais por estudante.
Na ação civil pública, o promotor Panicacci destaca relatos de diretores de escolas públicas que admitiram possuir “alunos concluintes do ensino fundamental com graves deficiências de leitura e escrita e que não absorveram os conhecimentos básicos exigidos”. Mais adiante, ele destaca o trecho de um texto escrito por um aluno da 8ª série de uma das escolas locais: “Estou de convidando para pasar algos dias em minha casa. Para você conhece a cidade e os pontos turístico. Traga sua família para conheser tamen vocês vam figar em minha casa (...)”.
Diante da argumentação da Promotoria, a juíza Luders pontuou na sentença que é “fácil constatar que a atual política de ensino não tem sido satisfatória e não tem cumprido aquilo que foi idealizado pela Constituinte, quando se pretendeu assegurar o direito à educação”. Em entrevista à CartaCapital, o promotor Panicacci esclareceu que a ação não visa simplesmente a volta do sistema seriado. “Há um consenso entre os educadores de que o sistema de ciclos representa um avanço, por diminuir a evasão escolar e a repetência”, pondera. “Mas, do jeito que está, não traz benefício algum. Só serve para maquiar as estatísticas educacionais. É preciso modificar a estrutura da escola para que os ciclos funcionem, com salas menores, professores mais capacitados, aulas de reforço e acompanhamento individualizado aos alunos”, completa.
Na mesma direção segue a argumentação da secretária de Educação do Rio. “Pessoalmente, sou favorável aos ciclos. A experiência internacional mostra que a progressão continuada pode ser excelente, tanto que a maioria dos países da Comunidade Europeia adotou o modelo. Mas por aqui eles foram implantados sem discussão com os professores e sem modificar as condições das escolas”, avalia Claudia, ex-secretária de Cultura do Estado de São Paulo. “Criamos um grupo de trabalho para reavaliar esse modelo até o fim do ano. Não pretendemos retroceder, substituir a ‘aprovação automática’ pela ‘reprovação automática’. A escola tem de promover inclusão, mas também tem a função de ensinar.” A secretária determinou que todas as 1.062 escolas da rede municipal iniciassem o ano letivo de 2009 com uma ampla revisão nas disciplinas de português e matemática nos primeiros 45 dias. “A ideia é identificar as deficiências de cada aluno para evitar que ele siga sem aprender e venha a ser reprovado no fim do ano”, diz a secretária. “É justamente isso que hoje falta aos ciclos de progressão continuada, um acompanhamento mais individualizado dos alunos, com aulas de reforço para grupos reduzidos e avaliação constante.”
Para muitos educadores, a medida é um tiro no pé. “Não há nenhum estudo ou avaliação que comprove que o desempenho dos alunos do sistema de ciclos é inferior ao do modelo seriado. Mas há dezenas de pesquisas que mostram como a progressão continuada combateu com êxito a cultura da repetência e a evasão escolar”, afirma Sandra Zákia Sousa, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). “Historicamente, a reprovação aparece como um mecanismo de controle disciplinar. Com os ciclos, isso desaparece. O aluno precisa ser motivado. Perceba que o conteúdo não pode ser o mesmo, o professor deve buscar exemplos próximos da realidade dos estudantes. O desafio é maior. Muitos preferem tirar o bode da sala. Se tem dificuldade de aprender, é reprovado. O sistema seriado só é mais excludente, não garante qualidade de ensino.”
Um dos poucos estudos dedicados a comparar o desempenho dos alunos dos dois sistemas foi publicado, em dezembro de 2008, pelos pesquisadores Sérgio Werlang, Lígia Vasconcellos e Roberta Biondi, do Banco Itaú, e por Naércio Menezes Filho, da USP e do Ibmec. Ao comparar as médias de 23 mil escolas estaduais na Prova Brasil, exame que avalia os alunos da rede pública de ensino fundamental, eles constataram uma ligeira vantagem para o sistema de ciclos. A diferença variava de 0,9% (na prova de matemática na 8ª série) a 4,4% (na avaliação de língua portuguesa da 4ª série). Para saber se o resultado não se devia a outros fatores, os pesquisadores incluíram variáveis socioeconômicas na análise, como a renda familiar dos alunos e o grau de escolaridade dos pais. A partir de então, a balança pendeu para o outro lado. Na 4ª série, as notas dos estudantes de escolas seriadas eram 1% superiores, diferença dentro da margem de erro da pesquisa. Entre os alunos concluintes do ensino fundamental, o descompasso foi pouco maior (1,4% em português e 1,8% em matemática). “A conclusão é que a disparidade no desempenho é mínima, se comparada aos avanços na evasão escolar e na economia de recursos para as escolas. A progressão continuada não piora nem melhora a qualidade de ensino”, afirma a economista Lígia Vasconcellos, uma das autoras do estudo.
Mas, se o sistema de progressão não interfere na qualidade de ensino, o que explica a existência de alunos com 14 anos que mal sabem ler e escrever? Para o educador Miguel Arroyo, professor aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-secretário adjunto de Educação da prefeitura de Belo Horizonte, a calamitosa qualidade do ensino público se deve a fatores como a baixa capacitação dos professores, às salas de aula superlotadas, à estrutura precária das escolas e ao baixo investimento estatal. “A cultura da repetência só tem uma finalidade: selecionar e segregar. Não é à toa que os alunos mais pobres, principalmente os negros, são as maiores vítimas da reprovação”, afirma.
De acordo com Arroyo, a progressão continuada parte do princípio de que, ao educar, é preciso respeitar os ciclos da vida, como a infância, a pré-adolescência, a adolescência, a juventude. Deve-se, portanto, garantir a todos tempo suficiente para aprender com os colegas da mesma idade. “É absolutamente normal que uma criança possa ter mais ou menos facilidade para aprender um conteúdo. O que não é normal é forçar um adolescente de 14 anos a conviver com uma criança de 6 anos”, afirma o professor. “De que adianta repetir os mesmos conteúdos para ele, da mesma forma como se ensina a uma criança, se ele está em outra fase da vida? Isso seria tão absurdo como dar a mesma dosagem de um determinado medicamento a um adulto e a um bebê.” Arroyo é um dos idealizadores da Escola Plural, uma inovadora proposta pedagógica apresentada, em 1994, pela Secretaria Municipal de Educação da capital mineira. O programa modifica a organização do trabalho escolar, propõe o rompimento com os processos tradicionais de ensino baseados na concepção cumulativa e de transmissão de conhecimentos e elimina os instrumentos de reprovação escolar. “Isso não significa que estamos aprovando automaticamente uma criança. Para o sistema funcionar, a avaliação é constante. Devemos mudar a forma de lecionar e encarar o aluno”, alerta o educador. “Um menino pobre não tem a mesma leitura de mundo de um menino rico. Um garoto que mora na favela pode ter uma noção muito mais ampla sobre o que é o desemprego e a desigualdade social do que outro que more num condomínio fechado. E esse conhecimento deve ser valorizado pelo professor”, acrescenta.
O Ministério da Educação não se posiciona nem a favor nem contra os ciclos, até para evitar rusgas com os estados e municípios, que têm autonomia para definir o próprio modelo. Mas, dentro da administração federal, há grandes defensores da progressão continuada. É o caso da secretária de Educação Básica, Maria do Pilar Lacerda, que participou da implantação do projeto Escola Plural em Belo Horizonte. “Eu já dei aula e peguei muitas vezes turmas com alunos multirrepetentes, que estavam diante do mesmo conteúdo pela quarta vez. Qual é o sentido de obrigar um aluno com problemas de aprendizagem a esse suplício, sabendo que ele poderá abandonar a escola? Isso é tão incoerente como um hospital rejeitar pacientes que não se curam rapidamente ou colocar uma faixa na entrada: ‘Aqui só atendemos pessoas saudáveis’. A escola é um direito de todos, e não só dos melhores alunos.”
Segundo a secretária, um dos maiores desafios da escola, hoje, independentemente do sistema de progressão adotado, é reformular o currículo, repensar os conteúdos mínimos que todos os alunos devem ter. “O nosso currículo é o mesmo de meados do século XX. A escola repassava esses conhecimentos e os alunos eram obrigados a absorver, como se fossem caixas vazias. Buscava-se, então, a média. De que adianta um estudante decorar todos os afluentes do rio Amazonas se, em sala de aula, ele não é capaz de se localizar, saber onde está o Norte e o Sul? Que tipo de conhecimento é indispensável? Está na hora de voltarmos a discutir essa questão.” Maria de Salete Silva, coordenadora do Programa de Educação do Unicef para o Brasil, destaca outro aspecto que está sendo negligenciado: a avaliação. “Não importa se o aluno está numa escola de ciclos ou numa escola seriada, a avaliação deve ser criteriosa e fazer parte do dia-a-dia”, opina. “Tão errado como aprovar automaticamente um aluno é reprová-lo indistintamente. A reprovação não educa. Se educasse, o Brasil estaria entre os países com melhor nível educacional do mundo. A avaliação serve para que o professor possa identificar as dificuldades dos alunos e intervir rapidamente, com aulas de reforço e atividades extraclasse, por exemplo.” Nem sempre a preocupação dos professores em avaliar constantemente os alunos e identificar com celeridade os problemas de aprendizagem garante a qualidade de ensino. Na Escola Municipal Oliveira Viana, na periferia da capital paulista, os professores montam verdadeiros dossiês sobre os alunos, relatando os conteúdos apreendidos, as deficiências de aprendizado, o comportamento em sala de aula e mesmo problemas de natureza familiar, como a existência de pais alcoólatras ou de um histórico de violência doméstica. Nem por isso é possível evitar situações como a do jovem Ítalo, relatadas no começo da reportagem, que aos 14 anos ainda confunde as sílabas ao escrever palavras simples, como pipoca.
“Só temos uma sala de apoio pedagógico equipada para dar aulas de reforço na escola. Dos seis computadores da sala, somente três funcionam”, comenta a professora Célia Aparecida Ribeiro Ornaghi, de 50 anos. “Mas conseguimos grandes avanços. O Ítalo tem dificuldades, mas aprendeu a escrever um pouco. O que aconteceria se ele tivesse abandonado a escola?” Com 30 anos de experiência no colégio, a diretora Jucileide Mauger diz ter visto muitos de seus alunos trocarem os bancos escolares pelo crime e o tráfico de drogas. “Há dez anos, quando a violência explodiu na periferia e a ONU elegeu o Jardim Ângela como o bairro mais violento do País, eu tinha de negociar com bandidos a vida de alunos jurados de morte. Alguns estudantes entregavam a arma para mim no início das aulas e a pegavam de volta ao sair do colégio, não podiam ficar desarmados.”
A volta por cima, diz a diretora, só foi possível quando os educadores e líderes de organizações não-governamentais atuantes na região se uniram para colocar os jovens em ambientes seguros, como a escola, que passou a promover festivais de rap. Mais ou menos nessa mesma época, Jucileide tomou a iniciativa de fazer um censo escolar no bairro e convidar quem havia abandonado a escola a voltar aos estudos. “Tínhamos cinco classes noturnas e passamos a ter quinze.” Jucileide tem para contar várias histórias de sucesso, fruto de sua iniciativa. “Não faz muito tempo apareceu um rapaz que eu não via há muito tempo. Ele repetiu as séries iniciais da escola, abandonou os estudos e só voltou depois que fizemos aquele censo no bairro. Hoje é chefe de uma empresa de segurança. E veio todo contente me contar que vai iniciar o curso de Direito na faculdade”, conta a educadora, sem esconder o sorriso.

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